Mais de 2,5 milhões de catarinenses ainda não têm acesso a serviços de esgotamento sanitário. O dado, levantado pela Associação Brasileira das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto (ABCON), escancara uma realidade ainda comum no Brasil. Em meio à pandemia de covid-19, 801 mil moradores do estado sofrem ainda com a falta de água potável para beber, cozinhar alimentos e lavar as mãos, uma das medidas mais simples e recomendadas pelas autoridades de saúde.
“Alguns estados do Sul, como Santa Catarina e Rio Grande do Sul, que têm alto Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) e boas condições de educação e economia, deveriam enfrentar de forma mais assertiva a questão do saneamento”, avalia o presidente da ABCON, Percy Soares Neto.
O reflexo disso pode ser visto na saúde da população, que recorre ao Sistema Único de Saúde (SUS), se depara com unidades lotadas por pacientes com covid-19 e volta para casa sem atendimento. Apenas nos dois primeiros meses do ano, 2,2 mil catarinenses foram internados com doenças causadas pelo consumo de água contaminada, como diarreia bacteriana e gastroenterite.
“A falta de investimentos em saneamento tem levado, em média, a 30 mil internações hospitalares por mês no país. Ou seja, são 30 mil leitos que não estão disponíveis para atender pacientes com covid-19 porque são ocupados por pessoas que vivem em condições insalubres. Isso é inaceitável em um país com o nível de investimento do Brasil”, critica Neto.
Pesquisa divulgada pelo IBGE no início de maio aponta que um em cada três domicílios brasileiros não têm ligação com rede de esgoto, apesar de que, entre 2018 e 2019, dois milhões de residências a mais passaram a ter acesso ao serviço.
Segundo a gerente da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), Adriana Beringuy, os dados mostram uma lenta evolução, ainda aquém do esperado. “Em 2019, são cerca de 70 milhões de moradores em residências que não possuem acesso à rede geral. Desse total, aproximadamente 28 milhões estão em domicílios onde o destino do esgotamento é considerado bastante insatisfatório, principalmente porque ele é feito através de fossas rudimentares ou é jogado diretamente no terreno e no meio ambiente, como valas, rios e lagos”, pontua.
Dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS) ilustram essa realidade nas três maiores cidades do estado. Em Joinville, quase 400 mil pessoas (68,2%) não têm acesso ao serviço de coleta de esgoto e mais de 13 mil não são abastecidas com água tratada. Na região metropolitana de Florianópolis, os efluentes de 61,2% dos mais de um milhão de habitantes não são recolhidos, enquanto 4,5% da população não possuem água potável nas torneiras (quase 54 mil pessoas). A situação de Blumenau é um pouco melhor. Se por um lado alcançou a universalização no abastecimento de água (99,9%), seis em cada dez moradores do município (59%) sofrem com a falta de redes coletoras de esgoto. As informações constam no Painel Saneamento Brasil.
“Para a pessoa que vive num bairro sem esgoto, não interessa se ela é 1%, 10% ou 20% da população. É um cidadão ou uma comunidade de cidadãos que não está atendida pelos serviços”, reforça Percy Soares Neto.
Nova legislação
No Congresso Nacional, antes do início da pandemia, os parlamentares discutiam o futuro do saneamento por meio do Projeto de Lei 4.162/2019. Um dos pontos do texto determina que a Agência Nacional de Águas (ANA) passe a emitir normas de referência e padrões de qualidade para os serviços de abastecimento de água, esgotamento sanitário, gestão do lixo urbano e drenagem de águas pluviais. Com isso, o objetivo é trazer estabilidade regulatória - atualmente, existem cerca de 50 agências reguladoras regionais, estaduais e municipais no país, com processos diferentes de trabalho. Vale ressaltar que a mudança não prevê que a ANA assuma a regulação direta do saneamento, ou seja, as agências já existentes continuarão a regular as operações das empresas.
Baseado na concorrência entre companhias públicas e privadas, o novo marco legal prevê que os contratos de saneamento sejam firmados por meio de licitações, facilitando a criação de parcerias público-privadas (PPPs). “Isso vai permitir que haja segurança jurídica e um ambiente negocial confortável para que a iniciativa privada possa ingressar no setor e suprir esse enorme lapso que existe no tocante à investimento. Esperamos que, nos próximos dez anos, toda essa necessidade possa ser suprida pelo capital privado consorciado com o capital público já existente”, espera o ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho.
Ainda de acordo com a proposta, a privatização dos serviços de saneamento não se torna obrigatória, apenas garante a oferta mais vantajosa para o setor, por meio de concorrência. Dessa forma, as empresas estatais podem ser mantidas, livres para participarem das concorrências, desde que se mostrem mais eficientes que as empresas privadas que participarem da licitação.
“Isso [abertura do setor] é importante por conta do déficit que a gente vive. Os recursos públicos para investimento em saneamento são cada vez mais escassos. Com isso, há a necessidade de atrair investimentos privados para o setor. Com a competição, ficará mais fácil chegar ao objetivo, que é a universalização do serviço”, analisa a pesquisadora do Centro de Estudos em Regulação e Infraestrutura da Fundação Getúlio Vargas (FGV/CERI) Juliana Smirdele.
A especialista vê com bons olhos a aprovação do PL 4.162/2019, que já passou pela Câmara dos Deputados e aguarda para ser discutido pelos senadores. Juliana Smirdele ressalva, entretanto, que esse é apenas o primeiro passo para que a competitividade se torne praxe no setor. “Se o projeto for aprovado, vai permitir que isso aconteça. Porém, não é garantia que haverá de fato expansão e o aumento na qualidade da prestação dos serviços. Para que isso aconteça, é imprescindível uma regulação adequada e forte, contratos bem construídos, com metas bem definidas e, sobretudo, fiscalização. Infelizmente, não é o que observamos hoje em dia”, acredita.
Para melhorar os índices de cobertura no interior dos estados – locais que mais sofrem com falta de serviços de saneamento, a nova lei possibilita a criação de blocos de municípios. Com isso, duas ou mais cidades passariam a ser atendidas, de forma coletiva, por uma mesma empresa. Esse fator pode viabilizar economicamente a ampliação dos índices de cobertura em cidades menores. Entre os critérios que poderão ser utilizados, está a localidade, ou seja, se dois ou mais municípios são de uma mesma bacia hidrográfica, por exemplo.